quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O analista em Nelson Rodrigues


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"Por coincidência, foi o mesmo analista do amigo já citado. Chega o Salim. Olha para o homem que, segundo imaginava, seria o ouvinte profissional, o que tinha mais orelhas do que os demais. O analista começa a falar. Fala sem pontuação, como na lição bem decorada. Salim berra: - 'E eu não falo nada?'. O outro não pára. Pergunta Salim: - 'Eu não falo?'. E o outro: - 'Não ouvi'. O clamor do Salim abala o edifício: - 'Eu não falo?'. O analista vai prosseguir no seu monólogo, quando meu amigo o agarra: - ' Vai ouvir o que eu vou dizer. Cala a boca! O senhor está falando da minha infância. Cala a boca. Está falando da minha infância, mas chega. Quer saber se estou apaixonado por minha mãe? Estou! Ouviu bem? Estou. Minha mãe é a grande paixão da minha vida. Tem 83 anos. Está cada vez mais linda. Ava Gardner é pinto. Páreo pra minha mãe não há, nunca ouve. Entendeu? Nasci apaixonado pela minha mãe. Té logo!'. Saiu como um centauro, derrubando mesas e cadeiras. Todo o edifício tremeu de pânico. Cada andar ouvira a declaração ululante. Juntou gente na porta do analista. Abrem alas para o Salim passar. No consultório, o analista vira-se para a enfermeira aterrada. Diz, como na barbearia: - 'O primeiro'. Não ouvira o berro de Salim" (Nelson Rodrigues, 14/09/1971).


Por essas e outras é, no mínimo, engraçado ler Nelson Rodrigues.